POR BRASIL DE FATO
O fato de existirem milhões de pessoas pobres, no Brasil e no mundo, conta com uma avaliação tão abundante de crítica e diagnóstico quanto de fraquíssimos efeitos sobre as medidas necessárias e exigíveis para ela ser superada definitivamente. À medida que o IBGE, por exemplo, passou a publicar os dados relativos ao censo de 2022, dois deles aparecem como dos mais preocupantes e desafiadores sobre a injustiça social que comprovam e precisa ser vencida: o primeiro, do aumento crescente de pessoas pobres brasileiras, e o segundo, por via de consequência mais do que natural e óbvia, daquelas que estão passando fome.
Sem um sentimento coletivo que inspire e ponha em ação o enfrentamento que isso importa de urgência, a tendência dessas duas gravíssimas doenças sociais aumentar é inevitável. Antes e depois do último censo do IBGE ser publicado, algumas publicações chegaram ao público, procurando retratar os efeitos desses males. A Agência Senado, por exemplo, em edição de 14 de outubro do ano passado, criticou o número de pessoas pobres que passam fome. Para um país que já tinha saído da mapa dessa carência, o alarme é escandaloso, pois o Brasil “voltou a figurar no cenário a partir de 2015” e, “em 2022, o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil apontou que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer — o que representa 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome. Conforme o estudo, mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave”.
Se algumas dessas pessoas consegue sobreviver mesmo assim, a Zero Hora de domingo passado fornece uma informação baseada também no IBGE, dando como exemplo o sacrificado dia a dia de uma família de catadoras/es de material reciclável moradora da Ilha Grande dos Marinheiros, três adultos, um adolescente e quatro crianças, a vida que levam graças à venda dos resíduos sólidos recicláveis que catam. O que sobra e o que é lixo para outras pessoas, para essas é condição de vida.
Refere a notícia: “Eles são mais de 100 milhões de brasileiros”. “Como vive uma família com renda per capita inferior a R$ 18 por dia? Esse foi o orçamento médio diário de 50% da população no ano passado, segundo IBGE.” (…) “São R$537,00 reais mensais por pessoa. A família Conceição da Cruz faz parte dos mais de 100 milhões de brasileiros que compõem os 50% da camada mais pobre da população.” Tomando-se em conta o fato de que 5% da população, “menos desfavorecida”, de acordo com a mesma fonte, tem renda média de R$ 87,00 “por pessoa mês” essa fica “32,5 menos do que os “1% mais ricos, grupo para o qual esse valor é de R$17.447 mensais por pessoa.” “É um distanciamento grande, sinal da desigualdade que ainda incomoda o país.”
São muitas e a maioria até bem intencionada, as receitas que buscam aumentar a renda de famílias como a das catadoras e catadores de material como a do Conceição da Cruz, que sobrevive na Ilha dos Marinheiros, bem como para matar a fome das milhões de outras que o Senado lamenta. O que parece insuficiente, porém, diante do tamanho do problema e da urgência de ele ser solucionado, reside no fato de ele ser abordado prioritariamente só no que concerne aos seus efeitos. Claro que isso é oportuno e conveniente, mas sem um decisivo ataque às suas causas é evidente que essa injustiça tende a aumentar, como está acontecendo no Brasil.
Faz-nos muita falta a preocupação contínua e generalizada, uma sensibilidade social muito mais concentrada e ativa, tanto por parte das Administrações Públicas como dos poderes econômicos privados, de que a satisfação de necessidades vitais de qualquer ser humano como as de trabalho, alimentação e moradia, por exemplo, são direitos humanos fundamentais e não favor ou esmola. Assim, quando a lei, no âmbito do Direito Penal, isenta de responsabilidade quem age sob “estado de necessidade”, e quando, no âmbito do Direito Civil, prevê “tutelas de urgência” para atender quem precisa de remédio cujo preço é inalcançável para a renda de quem pede, esquece-se que, num caso e noutro existe a indesejada possibilidade, de a própria vida da pessoa estar sob risco permanente e não só ocasional. A omissão de socorro, como se sabe, está prevista em lei que até pune quem for responsável por ela, mas de quem pode ser cobrada a responsabilidade pela omissão de socorro às vítimas da pobreza e da injustiça social?
Sem os meios materiais de uma vida de bem estar material, adianta pouco a lei prever, como faz para as catadoras e catadores de material e para quem passa fome, que umas e outras dessas pessoas são “livres e iguais,” nós vivemos numa democracia e o Brasil é um Estado de Direito. Isso constitui verdadeiro deboche inaceitável para esses seres humanos. De que liberdade e igualdade goza uma pessoa com fome e com quem pode ser medida a péssimas condições de saúde a que tem de sujeitar-se para catar o lixo? O dano certo e previsível que pesa sobre esses “sujeitos de direito” (!?), como a linguagem jurídica os qualifica, não pode esperar que a burocracia do “devido processo legal” permaneça alerta e à disposição dessas vidas para que elas não sejam ameaçadas, feridas ou eliminadas.
Ai de quem se atreva, entretanto, de rebelar-se e agir contra um estado de coisas como esse. Há todo um “sistema” socioeconômico e político, armado de uma poderosa “segurança jurídica”, que não tolera a “subversão” da “ordem” que mantém esse estado dominando o Estado. Entre os exemplos de heróis do passado que deram suas vidas em defesa de povos pobres e oprimidos de toda a América Latina, especialmente, encontra-se Ignacio Ellacuria, o reitor da Universidade Centro Americana (UCA) assassinado em 16 de novembro de 1989, pela ditadura de El Salvador, juntamente com quatro outros jesuítas, uma serviçal e sua sobrinha.
O que incomodava a ditadura era principalmente o fato de ele diagnosticar como “totalidade danificada” o tipo de vida que a civilização mundial criou, e o regime salvadorenho adotou, mais ou menos como o Brasil fez em 1964 e uma tentativa de golpe de janeiro deste 2023 tentou retomar. Contra essa realidade, Ellacuria propunha, o que parece paradoxal para quem vê na riqueza material a única forma de vencer a pobreza, justamente o contrário: uma “Civilização da pobreza”. Esse é o título de uma coletânea de artigos reunida em livro no qual Jon Sobrino resume o pensamento de Ellacuria assim:
“Para definir, ou ao menos descrever, o que era determinada civilização, ainda que variasse a formulação, fixou-se em duas coisas essenciais: qual é o motor fundamental da história e qual é o princípio de humanização. Na civilização da riqueza, o motor da história é o acúmulo do capital, e o princípio de (des)humanização é a posse-desfrute da riqueza. Na civilização da pobreza, o motor da história, as vezes chamado de princípio de desenvolvimento – é a satisfação universal das necessidades básicas e o princípio de humanização é a elevação da solidariedade partilhada.” (São Paulo: Paulinas, 2014, p. 36, grifos do autor).
Não existem pobres, portanto, mas sim empobrecidos. Tanto a satisfação das necessidades básicas, quanto o princípio de humanização da solidariedade partilhada, de tão estranhos e opostos que são à civilização da riqueza, podem encontrar-se na mira de morte desta, como aconteceu com Ellacuria. Se não pelas armas, pela exploração do trabalho alheio e pela concentração de renda, típicas do acúmulo do capital, aí se encontrando, pois, a causa tanto da cruz que pesa sobre os ombros de famílias como a Conceição da Cruz (!), quanto o sacrifício do direito à alimentação que milhões de outras estão sofrendo.
Daí a radicalidade com que Pedro Demo, por exemplo, procura defender a “solidariedade como efeito de poder”, título de um livro seu, no qual se lê: “na solidariedade que vem do centro e da elite tremula sempre o pedido incômodo da má consciência que suplica, no fundo, não responder pelo confronto. Do ponto de vista dos marginalizados, entretanto, o confronto é vital, embora não implique necessariamente violência, sobretudo a mesma violência do centro e da elite. Mas implica ruptura radical e essa não se faz sem estragos, que podem sempre ser diminuídos e melhor distribuídos dependendo de nossa qualidade política e ética.” (São Paulo: Cortez, Instituto Paulo Freire, 2002, p. 271).
Se a interpretação e a aplicação de leis pretenderem impedir essa ruptura radical, o problema não é dela e sim das leis, pois essas é que serão infiéis aos seus fins que outros não são os de defenderem a vida e não sacrificá-la, ou elimina-la. Só em função da vida é que se podem considerar legitimadas.
Da disposição com que esse confronto for assumido pelo poder de libertação solidária da pobreza depende todo o futuro da civilização humana que ele pode criar, com as suas aliadas e os seus aliados. Se há uma forma certa, porém, de nada disso acontecer, é a de, diante da superioridade do poder contrário da civilização da riqueza, nos contentarmos em continuar satisfeitos em nos autoqualificarmos somente como sujeitos de utopias.
* Procurador do Estado do Rio Grande do Sul (Aposentado). Mestre em Direito pela Unisinos. Professor de Direito Civil da Unisinos. Advogado e assessor jurídico de movimentos populares como o MST e ONGs ligadas aos direitos humanos. É também fundador e coordenador da ONG Acesso – Cidadania e Direitos Humanos e integrante da Renap (Rede Nacional de Advogados Populares).