POR SOCIOAMBIENTAL
**Essa notícia faz parte da série ‘O Caminho pro Quilombo’, que traz reportagens sobre os desafios e as belezas da vida no Quilombo Bombas. Confira a série completa no site do ISA.
Em meio às árvores altas e à vegetação abundante da Mata Atlântica, se destaca ao fim de uma subida uma construção simples de madeira, toda pintada em azul. O silêncio do exterior é rompido pelas vozes misturadas de crianças conversando.
As escolas do Quilombo Bombas são atendidas tanto pela rede municipal, quanto pela rede estadual de ensino. Ali, o ensino é multisseriado e alunos de diferentes idades são ensinados pelo professor em uma mesma sala de aula.
Para chegar à escola na comunidade de Bombas de Baixo, saindo da sede do município de Iporanga, é preciso percorrer 5 km por uma estrada de terra, e atravessar a pé mais 6 km em uma trilha precária. O caminho até a escola de Bombas de Cima passa por mais uma caminhada de cerca de uma hora e meia em terreno íngreme e com atoleiros.
Desde 2015, quilombolas exigem o cumprimento de uma decisão judicial que obriga o Estado de São Paulo a construir uma estrada e retirar a comunidade do isolamento, mas a obra nunca saiu do papel.
Confira a série completa:
‘O Caminho pro Quilombo’: em SP, quilombolas lutam por estrada que garanta acesso a direitos básicos
Ausência de estrada faz quilombolas de Bombas (SP) sofrerem com perda de alimentos
Quilombolas de Bombas (SP) precisam ser retirados no lombo de burros para atendimento emergencial
Suzana Pedroso do Carmo: nova geração quilombola abre caminhos contra o racismo institucional
Além de comprometer o direito básico de livre circulação de quilombolas, a ausência da estrada impossibilita o acesso a serviços básicos com qualidade e a execução de melhorias na infraestrutura da comunidade, inclusive na escola.
Sem energia da rede elétrica, a comunidade usa placas solares para abastecer a escola do Quilombo Bombas de Baixo. Alguns desses equipamentos precisam de manutenção, porque não estão carregando adequadamente e os professores e as professoras precisam utilizar a iluminação natural.“Quando tá nublado ou então quando tá há dois, três dias, com chuva, a gente não consegue dar aula à noite. A gente tem que adiantar a aula para a tarde, porque não tem condições”, conta a professora Querlis Furquim de Moraes.
Os professores e as professoras precisam passar a semana em um alojamento no quilombo, cedido parte pelo governo do município e parte pela comunidade, porque percorrer a trilha até a escola diariamente é inviável. Quando chove, o rio que corta o trajeto enche, dificultando a travessia. Nos dias de maior vazão da água, os docentes precisam retornar pela trilha e os alunos e as alunas ficam sem aulas.
“A gente tem que atravessar, porque voltar tudo de novo não dá, é muito cansativo. Então você tem que torcer para que tudo dê certo e pegar um apoio, porque é muita correnteza. Eu já passei com a água para cima da cintura, segurando na madeira, para poder ver onde que eu podia pisar”, relembra Querlis.
A comunidade relata que a ausência da estrada também tem causado constante rotatividade de professores e professoras na comunidade, além do atraso na entrega dos materiais didáticos.
“Muitas vezes a professora falta, não põe substituto. Já chegou a ficar até três meses sem substituto aqui, porque tem professor que desiste. […] As coisas é feito meio de qualquer jeito. Eu até fiz uma escrita, mandei lá para São Paulo, porque no ano passado, tava chegando no meio do ano e as crianças não tinha livros, nem do municipal, nem do estadual”, diz Suzana Pedroso do Carmo.
“Por ser uma sala multisseriada também é bem difícil, porque você tem que trabalhar do pré ao 5º ano, tudo num horário só, tudo na mesma turma. É mais difícil do que você trabalhar com todos numa mesma série”, completa Querlis.
Escola quilombola com educação quilombola
A comunidade defende que, a despeito da conquista da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas, a partir da Lei 10.639/2003, seja aplicada também nas salas de aula do quilombo uma Educação Escolar Quilombola.
“A maioria dos professores é estudante, só tem um que é formado. Eu já falei várias vezes que é direito da comunidade ter uma aula diferenciada dentro desse quilombo, mas o que a gente vê é o pouco caso do governo em cima das comunidades”, diz Edmilson Furquim, coordenador da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas.
Para ele, os principais desafios para a implementação efetiva de uma educação escolar diferenciada são a falta de formação dos professores sobre os aspectos socioculturais e históricos do quilombo, a pouca abertura para participação da comunidade na gestão escolar e a ausência de elementos essenciais da cultura e tradição do quilombo no currículo escolar.
“Tem muitas coisas que não é aplicado dentro da sala de aula. Uma matemática quilombola, vamos falar assim… é atilho, cargueiro, mão, quarta. Elas não são aplicadas dentro da escola. Os nossos alunos aqui entendem dessa maneira, porque eles nasceram e cresceram junto de nós e dos nossos antepassados falando nessa matemática quilombola”.
Matemática Quilombola
Os termos aos quais Edmilson Furquim faz referência em sua fala dizem respeito às unidades de medidas utilizadas para o trabalho nas roças tradicionais.
Cargueiro é o cesto utilizado para o transporte dos alimentos. Um cargueiro de milho, por exemplo, equivale a oito mãos de milho. Cada mão de milho, por sua vez, equivale a 16 atilhos de milho e cada atilho equivale a quatro espigas. Sendo assim, um cargueiro de milho são 512 espigas de milho. Já a quarta é utilizada para medir o tamanho das roças e do terreno. Uma quarta equivale meio hectare de terra.
Os conhecimentos tradicionais e as unidades de medidas utilizadas nas roças das comunidades quilombolas da região estão registrados no Dossiê do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola Do Vale Do Ribeira (SP).
Uma história viva
A história do quilombo Bombas, assim como a memória da resistência dos que ali viveram, é viva no território e na tradição oral da comunidade. Furquim guarda com carinho e orgulho os objetos de seus antepassados, ou ‘dos antigos’, como são chamados no quilombo. “A nossa vida aqui dentro do Sertão, onde nossos pais viveram, nossos avós, nossos antepassados, é totalmente diferente. Essas são coisas que a gente vem guardando, pra de tempo em tempo dar uma passadinha aqui para relembrar alguma coisa”.
Resgatando as memórias da vida de um dos moradores mais antigos da comunidade, falecido na década de 1980, a liderança lembra que os relatos dos que se foram também são parte da história de resistência do povo quilombola. “Esse homem era o maior tocador de Romaria. Nunca comprou uma viola, ele mesmo fez a viola dele. Celestino se foi, mas sua história continua”.
Assim como tantos outros moradores do quilombo, Edmilson sonha que, com a construção da estrada, possa haver a formação de professores e professoras quilombolas para atuar no território e ajudar a preservar a memória de seu povo.
“Tem que estar no livro de História. Eles (os não quilombolas) contam do jeito que eles querem, colocam uns 10 parágrafos lá e tá bom. Mas não, essa história é diferente e fica mais bonita ainda contada por um quilombola”.
Por um futuro quilombola
Nascida e criada no Quilombo Bombas, Edilaine Ursulino lembra que durante a juventude dos pais, Edmilson Furquim e Elza Ursulino, a escola do território fornecia aulas até a quarta série. Junto de sua comunidade, Edilaine lutou na justiça para que o Governo do Estado passasse a fornecer também o ensino médio no quilombo. Em 2019, Edilaine concluiu seus estudos no próprio território, através do Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Agora, ela luta para que as futuras gerações possam acessar o ensino superior.
“Eles (meus pais) estão lutando por nós e nós estamos lutando pelos nossos (filhos) também, porque nós não quer que eles passem tanta dificuldade igual nós passamos”, diz a jovem.
Esse também é o desejo da juventude da comunidade. No oitavo mês de gestação, Laíde Ursulino sonha que o filho possa um dia sair do território para fazer faculdade, direito que hoje é negado aos seus outros três filhos. “É o meu sonho, sonho de todas as mães, né? E como vai sair daqui? Vai parar ali (no ensino médio) e não vai fazer mais nada”.
“Dos jovens aqui da comunidade, a maioria não conseguiu terminar os estudos na época certa, acabaram ficando por aqui, terminando no quarto ano. Eu mesmo, fui terminar os estudos agora, com 28 anos, que teve o EJA. Se tivesse o acesso, eu tinha terminado lá atrás os estudos, aprendido mais coisas. Talvez conseguiria fazer uma faculdade”, concorda Valdecir de Araújo Almeida durante reunião da Associação de Remanescentes do Quilombo Bombas.
Resistência
O especial ‘O Caminho pro Quilombo’ chegou ao fim, mas a luta do Quilombo Bombas pela construção da estrada e retirada da comunidade do isolamento continua.
Na página inicial do site do ISA você pode conferir um placar que marca o tempo decorrido desde que a decisão judicial obrigou o Governo de São Paulo a viabilizar a obra. Ele nos lembra que o bem viver das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira é urgente e que a lentidão do Estado para assegurar direitos básicos não pode continuar.
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