POR BBC NEWS BRASIL
“Existe uma guerra contra os carros na América”, declarou um popular canal americano de direita no YouTube em 2017.
O vídeo defendia que os padrões mais rigorosos de controle de emissões aumentam o preço dos carros movidos a gasolina e fariam parte de uma tentativa maior de fazer as pessoas trocarem seus veículos individuais pelo transporte público.
“É o fim da liberdade”, lamenta o vídeo.
As opiniões levantadas pelo canal não eram novas, nem se limitam aos Estados Unidos.
Acusações de prática de “guerra ao carro” já vinham circulando no Reino Unido 15 anos antes, quando Londres se preparava para apresentar o que era, na época, o maior programa de cobrança de pedágio urbano do mundo. A capital britânica passou a exigir que os motoristas pagassem uma taxa pelas viagens pelo centro da cidade.
O maior navio de cruzeiro do mundo partiu para sua primeira viagem na semana passada de Miami, nos Estados Unidos, em meio a preocupações de ambientalistas.
O Icon of the Seas, com 365 metros de comprimento, tem 20 decks e pode acomodar no máximo 7,6 mil passageiros a bordo.
O navio, que pertence ao grupo Royal Caribbean, iniciou uma viagem de sete dias.
Os ingressos variam de US$ 1.723 a US$ 2.639 por pessoa (de R$ 8,473 a R$ 12,978), de acordo com o site da Royal Caribbean. Um cruzeiro na alta temporada, perto do Natal, custará US$ 5.124 (R$ 25,198) por pessoa.
Sua viagem inaugural fará escala em Saint Kitts e Nevis e Charlotte Amalie, nas Ilhas Virgens dos EUA.
Mais recentemente, Londres expandiu sua Zona de Emissões Ultrabaixas (Ulez, na sigla em inglês). Nela, também são cobrados carros que não atendem a determinados padrões de controle de emissões.
A medida fez com que manifestantes conhecidos como Blade Runners destruíssem câmeras de vigilância.
Na cidade de Ghent, na Bélgica, o vice-prefeito recebeu ameaças de morte após um plano para desestimular viagens curtas de carro, em 2017.
Apesar das crescentes reações negativas, cidades de todo o mundo prosseguem em seus esforços para reduzir o tráfego e melhorar a qualidade do ar, incentivando os motoristas a substituir seus carros poluentes pelo uso de transporte mais verde.
Paris, na França, tem como objetivo proibir os carros movidos a gasolina até 2030. Um dos motivos é a necessidade de combater as mudanças climáticas.
E, no final de 2024, Nova York, nos Estados Unidos, deve realizar o primeiro experimento de redução de carros do país: o início, após anos de tentativas, da cobrança de pedágio sobre viagens abaixo da rua 60 de Manhattan.
A decisão de Nova York de finalmente dar continuidade ao seu projeto de pedágio urbano surge depois de décadas de bloqueios estaduais e nacionais.
A iniciativa pretende reduzir o trânsito no centro da cidade em 15 a 20% e levantar bilhões de dólares para melhorar o seu estrangulado sistema de metrô.
Mas, nos Estados Unidos, terra das autoestradas – onde os carros há muito tempo são símbolo de independência e o romance da estrada é parte da imaginação coletiva – será que os programas de combate ao uso excessivo dos automóveis podem contar com o apoio da população?
Acelerar a redução dos carros
A necessidade de mudanças nos centros urbanos americanos está no ar, literalmente.
As emissões dos escapamentos são como “incêndios florestais acontecendo nas nossas ruas”, afirmou a governadora de Nova York, Kathy Hochul, em entrevista coletiva celebrando a aprovação federal do pedágio urbano.
Hochul destacou que as horas de trabalho perdidas no trânsito equivalem a cerca de US$ 20 bilhões por ano (cerca de R$ 99 bilhões) – “um completo desperdício”, segundo ela.
Além disso, as reformas realizadas em outros lugares do mundo indicam que, apesar da resistência inicial, os planos de redução do número de carros ganham aceitação pública cada vez maior no longo prazo.
Quando Ljubljana, na Eslovênia, fechou o centro da cidade para os pedestres, em 2007, a oposição foi considerável. Os moradores temiam que o acesso às suas casas ficasse restrito.
Mas, pouco mais de uma década depois, cerca de 90% declararam que são contra a reintrodução dos carros.
Qual o motivo dessa oposição inicial?
Na verdade, as pessoas têm dificuldade para ponderar potenciais ganhos e perdas. É o que sugere um conceito da psicologia comportamental conhecido como teoria da perspectiva – a aversão desproporcional às perdas incentiva o viés para a manutenção do status quo.
E este viés, por sua vez, pode dificultar a implementação das mudanças, como descobriu a professora de psicologia ambiental Birgitta Gatersleben, da Universidade de Surrey, no Reino Unido.
Ela pesquisou a cidade inglesa de Guildford e descobriu “empresas locais muito contrárias ao pedestrianismo no centro da cidade”.
“Elas receavam perder clientes, embora tivéssemos muitas evidências de que, se você fechar as ruas importantes para os pedestres, a clientela aumenta”, relembra a professora.
A ‘curva de Goodwin’
Demonstrar às pessoas os benefícios da redução do trânsito de carros, em vez de apenas falar sobre eles, pode ter efeitos poderosos.
Na capital da Suécia, Estocolmo, o programa de pedágio urbano começou a ser testado em 2006. E, nesse período, a opinião pública mudou – a grande oposição existente à cobrança se transformou em apoio por uma pequena maioria.
No ano seguinte, um referendo na cidade transformou a cobrança do pedágio urbano em permanente.
“O momento que antecede a realização de alguma coisa é o instante político mais precário de todos, devido ao alarmismo”, segundo o defensor da segurança nas ruas Doug Gordon. Ele é um dos apresentadores de um podcast com título provocador: War on Cars (“Guerra aos carros”, em tradução livre).
“Mas, na minha experiência, os temores normalmente não se realizam, mas os benefícios, sim”, afirma Gordon.
Existe até uma curva que prevê essa mudança de comportamento, segundo Leo Murray, diretor de inovação da ONG climática Possible.
Ela é chamada de “curva de Goodwin”, em virtude do professor emérito de política de transporte do University College de Londres, Philip Goodwin.
A curva mapeia como o apoio do público aos sistemas de pedágio tende a começar bem, com o reconhecimento da necessidade da intervenção. Esse apoio é então reduzido, durante a publicação dos detalhes específicos antes da execução do programa – e aumenta novamente após a sua implementação.
“Não conseguimos encontrar um único exemplo de medida de redução do tráfego praticada por mais de dois anos que tenha sido posteriormente eliminada por falta de apoio público”, observa Murray.
Ele indica um estudo em Edimburgo, no Reino Unido, que demonstrou como a oposição inicial aos limites de velocidade urbanos se transformou em apoio popular. E também menciona a mensagem de apoio da Espanha ao País de Gales, que estudava alterações dos limites de velocidade.
“Mas o processo até chegar lá é doloroso e sempre acompanha essas curvas”, acrescenta Murray. “Por isso, é preciso ter coragem política e um cronograma sensível. Você não irá querer concorrer à reeleição no início da curva de Goodwin.”
O que as cidades que estão analisando a introdução de políticas de redução dos carros podem aprender com os sucessos e tropeços dos centros urbanos que já tomaram essas medidas?
Pesquisas indicam que algumas respostas podem estar na melhor compreensão do comportamento humano e do nosso processo de tomada de decisões.
As intervenções urbanas para reduzir o trânsito de automóveis aparentemente funcionam melhor com abordagens diversificadas para incentivar a mudança – por exemplo, promovendo simultaneamente a adoção de modos de transporte mais ativos, como caminhar e andar de bicicleta.
Também pode ser fundamental manter boa comunicação e procurar aumentar a consciência das pessoas.
Em 2003, Londres criou uma estratégia de comunicação extensa e escalonada, destinada a responder às perguntas mais frequentes dos moradores da cidade: “como isso irá me afetar? como irá funcionar?”
Mas esse processo pode ser politicamente perigoso, se não for compreendido como suficientemente justo, solidário ou receptivo às preocupações.
O ambicioso projeto da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, que inclui calçadões, ciclovias, educação de trânsito nas ruas e restrições ao estacionamento, por exemplo, causou grandes reações negativas. Um movimento chamado #saccageparis (“saquear Paris”, em tradução livre) expressou a fúria do público sobre a transformação das ruas da cidade.
Com isso, a declaração de uma nova e mais ampla zona de baixa emissão na região metropolitana de Paris está seguindo uma estratégia ponderada de mudança, segundo Tony Renucci, diretor-executivo da ONG francesa Respire, que luta contra a poluição do ar.
“Eles estão levando mais tempo e tentando desenvolver incentivos financeiros maiores para ajudar as pessoas a abandonar os carros”, ele conta. Um desses incentivos é um subsídio de até 6 mil euros (cerca de R$ 32 mil) para as pessoas que trocarem seus carros altamente poluentes por modelos a hidrogênio, elétricos ou híbridos.
Da mesma forma que em Paris, a popularidade inicial do pedágio urbano em Londres aumentou depois do anúncio de que o dinheiro levantado seria destinado a melhorias do transporte.
No último verão, antes da expansão da Ulez, o programa de incentivo financeiro para que as pessoas troquem seus carros por modelos mais limpos foi estendido para todos os moradores da capital britânica, sem comprovação de renda.
“A questão é fundamentalmente de justiça, de garantir que quem irá pagar não são os mais vulneráveis, mas os poluidores”, afirma Mark Watts, diretor-executivo da rede global de prefeitos C40 Cities.
Watts foi conselheiro sênior do ex-prefeito de Londres Ken Livingstone, o primeiro a ser eleito diretamente na capital. Ele coordenou a introdução do pedágio e da zona de baixas emissões da cidade.
“Você precisa oferecer às pessoas uma verdadeira opção: não só aumentar o custo de dirigir, mas uma oportunidade de passar a caminhar ou usar o transporte público”, explica ele.
“Barcelona introduziu o passe livre por três anos para as pessoas que descartassem carros poluentes. Estocolmo ampliou o serviço de ônibus. Londres, na Ulez, ofereceu descontos para o compartilhamento de carros, aluguel de bicicletas e descarte de veículos”, exemplifica Watts.
Em última análise, Doug Gordon, do podcast War on Cars, afirma que pode ser simplesmente questão de determinação do governo de enfrentar a oposição.
“Você simplesmente precisa tomar as medidas e seguir em frente, porque sempre haverá controvérsias”, afirma ele.
A jornada do pedágio de Nova York
O plano de pedágio urbano de Nova York terá aprendido com as experiências de outras partes do mundo?
O projeto nova-iorquino é fortalecido pela ideia de reinvestir a receita do pedágio (US$ 15 bilhões, cerca de R$ 74 bilhões) na rede de transporte público MTA. “Qualquer pessoa que tenha andado nela recentemente sabe que é preciso”, segundo Watts.
O programa também irá incluir um sistema de cobrança flutuante, com tarifas menores fora dos horários de pico. Esta medida oferece flexibilidade aos motoristas.
E uma coalizão de apoio de organizações de base e grandes empresas chamada Congestion Pricing Now vem ajudando a difundir a conscientização sobre o sistema, com eventos públicos, reuniões com interessados e uma grande campanha publicitária. Mas ainda há resistência.
“O sistema de pedágio urbano é simplesmente mais um buraco na estrada de Nova York para a ruína” foi a manchete de um jornal local no ano passado.
Existem também grandes preocupações no Estado vizinho de Nova Jersey, onde já existe um pedágio para entrar em Manhattan de carro. O governador do Estado chama a nova proposta de forma descarada de tomar dinheiro por parte de Nova York.
Mas Kate Slevin, da organização sem fins lucrativos Regional Plan Association, sugere que existem formas de ajudar a reduzir essas preocupações.
Uma solução pode incluir pedágios reguladores, “para que, não importa por quantas pontes ou túneis você passe, os motoristas paguem mais ou menos o mesmo valor”.
Ela também destaca que já existem planos de atenuação para evitar que o tráfego de caminhões seja transferido para regiões que já são menos favorecidas.
O tráfego de caminhões é um problema à parte, já que esses e outros veículos grandes têm limitações em relação aos cruzamentos para entrar e sair da cidade. Por isso, o pedágio pode incentivá-los a seguir por caminhos mais longos, atravessando bairros residenciais.
Para enfrentar esta questão, o plano de pedágio de Nova York inclui investimentos de US$ 155 milhões (cerca de R$ 767 milhões) para reduzir a poluição dos caminhões, ampliar parques, eletrificar ônibus e promover o tratamento de asma entre a população.
“À medida que o trânsito diminui, fica mais fácil definir zonas para pedestres, corredores de ônibus, ciclovias e formas inteligentes de gerir estacionamentos e o transporte de carga”, afirma Slevin.
“Mas as novas soluções para as ruas também exigem a liderança das autoridades municipais e uma visão que possa eliminar parte da política local que atrasou a construção de corredores de ônibus e ciclovias em Nova York e em outras partes do mundo.”
O caminho à frente
Diversas outras cidades americanas, de Boston até Oregon, estão estudando a possibilidade de adotar a mesma medida.
Boston propôs a formação de um comitê sobre o preço da mobilidade, para explorar opções como o pedágio urbano. E Oregon já está testando um sistema mais amplo para tarifar os veículos com base na quilometragem percorrida.
“É um momento realmente empolgante na história de Nova York – e para todo o país”, afirma Slevin.
A consultora de políticas urbanas Diana Lind chegou a sugerir que esta inovação em termos nacionais nos Estados Unidos pode ajudar a marcar o início de uma mudança mais ampla, reduzindo o uso de carros movidos a gasolina.
Para ela, “o pedágio urbano costuma influenciar outras cidades que estão tentando descobrir como promover o transporte público e opções de mobilidade mais sustentáveis, como caminhar e andar de bicicleta”.
Lind observa que, quando ficou claro que Nova York estava estudando a adoção do pedágio urbano em 2019, a cidade da Filadélfia também começou a pensar nessa possibilidade. E, quando o plano chegou novamente às manchetes em 2023, cidades como Los Angeles também passaram a estudar a aplicação do sistema.
“As cidades olham umas para as outras em busca das melhores práticas”, segundo ela. “E, se o programa de Nova York for bem sucedido, outros prefeitos sem dúvida irão começar a pensar em formas de implementar algo similar.”